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Sempre fui a favor da lei. Gosto da ideia de lei desde pequeno. Quando, na vila, brincava com os meninos mais velhos, o que me protegia deles eram os combinados do “que pode” e do “que não pode”.  Assim, quando eu vencia e me divertia com isso, os rapagões, brabos com a minha alegria abusada, continham a vontade de me colocar “no meu lugar”, de me “dar um jeito”, de me “fazer aprender uma lição”, porque, afinal, havia a lei sem a qual a brincadeira não existia. Se violassem a lei, acabava o jogo.  Aprendi, nessa época de garoto, esta lição: a lei precisa ser muito boa e precisa ser a regra de um jogo que todo mundo queira jogar para poder ser respeitada. Só mais tarde entendi que isso se chamava democracia.

Já adulto, fui estudar Direito e aprender sobre as leis da cidade, do estado, do país. Era ainda a época do Regime Militar, um período no qual muitos eram defensores da ordem, mas não necessariamente da lei que, durante esses 21 anos de governos militares, foi mais desrespeitada do que em qualquer outro período da história do país, com exceção, talvez, da Ditadura Vargas. A Constituição de 46  – que os militares acusavam João Goulart de querer alterar – foi violada pelos Atos Institucionais e depois abandonada pela Constituição semi-outorgada de 1967, igualmente desfigurada pelo AI-5 e pela Emenda número 1, elaborada pelos ministros militares que impediram a posse de Pedro Aleixo, o vice de Costa e Silva que se opôs ao AI-5, dizendo: “o problema deste ato não é o senhor, presidente, nem os que com o senhor governam o país, mas o guarda da esquina”.

E então, nos anos setenta, o que valeu foi a vontade do guarda da esquina, que queria impor ordem em tudo – e a violência, em nome dessa ordem, anuviou o país. Por isso, nos anos oitenta, cresceu a gana por uma lei que restaurasse os direitos, que limitasse as possibilidades de que a vontade de alguns substituísse as regras estabelecidas para todos. Nunca esqueço do deputado Ulisses, com o livro na mão, dizendo: “declaro promulgado o documento da liberdade, da dignidade, da democracia, da justiça social do Brasil”. Era a lei. E ela destacava, claramente, no seu artigo terceiro, os objetivos fundamentais da República. Entre eles, o de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Esse é o papel da lei: ser a régua e o compasso do jogo.

A diferença entre a lei e a ordem é evidente: a lei garante para todos os seus direitos; a lei deve ser obedecida porque protege a todos em suas diferenças. A lei garante a dinâmica da sociedade que, livremente, escolhe seus caminhos. A lei é ponte. A ordem, muro. A lei é princípio e fim, a ordem, circunstância. A lei expressa a vontade livre do cidadão. A ordem silencia. A lei, quando cumprida, gera ordem. A ordem, para ser cumprida, muitas vezes dispensa a lei. Mas essa nossa realidade de leis que não são cumpridas, cria a ilusão de que é preciso “por ordem” na casa e que “por ordem” é a solução. E não é.

A solução nunca é menos democracia. É mais, muito mais. Um exemplo: hoje existe, como atribuição do Poder Executivo, a chamada garantia da Lei e da Ordem. Essa expressão é contraditória. Cabe garantir a lei, apenas a lei. A ordem não é o fim e não pode nunca estar acima da lei. Mas para muitos essa é a intenção. Não é à toa que se propõe que as forças militares garantam a ordem excluindo-as da lei. Percebem a contradição? Muitos não percebem ou não querem perceber porque querem mais segurança e acham que isso só é possível com a ordem – e não com a lei. O velho dilema sociológico discutido por Zigmunt Baumman entre liberdade e segurança ganha, nessa proposta, um contorno extremo: a segurança que cancela qualquer limite e se torna constituinte, última instância judiciária e, principalmente, executora da ordem. Acima da lei. Ou pior, contra a lei.

Eu sempre entendi que as leis e as instituições que as criam, aplicam e protegem, deveriam ser invioláveis na sua integridade de instituições que possibilitam que a lei exista e seja aplicada, garantindo a todos a possibilidade de buscar seus espaços de liberdade e realização na sociedade que vivemos. Nem vou falar sobre os incríveis problemas que precisamos resolver para melhorar o funcionamento dessas instituições e a aplicação mais adequada da lei. Aliás, pelo contrário, creio que apenas isso deveria interessar. A democracia é o reino da lei aplicada para todos. A ordem é a volta ao poder do guarda da esquina. Com exclusão de ilicitude.

* Daniel Medeiros é Doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.

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A lei. A ordem.

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